domingo, 25 de março de 2018

Crítica sobre a série "O Macanismo", de José Padilha




Acabei de assistir “O Mecanismo” do Padilha. Provavelmente vou receber críticas ao expressar essa opinião, especialmente dos meus companheiros da esquerda, mas senti a necessidade de escrever. Paciência.

Gostaria de começar separando técnica de ideologia. Por ser profissional do cinema, presto muita atenção no primeiro ponto e não acho justo deixar minha ideologia ou a do Padilha distorcerem a técnica aplicada. Sei que tem muita gente, inclusive diversos amigos, que me falam que a ideologia é mais importante. Em outras palavras, que eu não posso achar genial um filme feito por um babaca. Que não é possível separar a obra do autor e deve-se assistir de maneira crítica todo o conjunto. Como comunicador, compreendo e sou crítico à responsabilidade aferida a qualquer outro comunicador. Entendo que o poder da mídia deve ser usado para um bem universal e não para manipular opinião pública. Entendo que as pessoas não podem falar o que quiserem sem serem responsabilizadas por sua fala. E entendo também que gosto é uma coisa pessoal e que não tem nenhum problema você deixar de gostar da obra de uma pessoa por ter deixado de gostar daquela pessoa especificamente.



Eu infelizmente não consigo ser prático assim com essa facilidade. Para citar exemplos polêmicos, adoro os filmes do Polanski e do Woody Allen, e ninguém vai conseguir me convencer que o Kevin Spacey não é um puta de um ator e eu adoro ver filmes com ele. House of Cards era uma de minhas séries prediletas.

Isso não significa que eu não pense que cada um deva ser devidamente punido pelo que fez. E compreendo inclusive como as táticas de boicote surtem efeitos nos dias atuais, onde a lógica do mercado é que manda em tudo. Ainda assim, gosto dessas obras e, me desculpem, mas se eles fossem presos e acabassem fazendo um filme dentro da prisão, eu ia querer assistir.


Pesado né? Paciência. A vida anda bem confusa ultimamente mesmo.


Por mais que eu reconheça não compartilhar das mesmas ideologias e/ou não defender nem apoiar crimes cometidos por essas pessoas, não consigo dizer de cara lavada que o trabalho deles não é de boa qualidade. Ou ainda, que eu não gosto de suas obras. Me negar isso talvez seja tão ignorante como o que acontece no extremo oposto do espectro político, onde por exemplo um bando de boçais diz que a música de Chico Buarque é ruim por causa da ideologia dele. Você pode não gostar da música, nem da ideologia, mas achar que o cara é ruim, que a obra dele não merece respeito. Sei lá... Me parece que é um caminho de desumanização muito extrema.

Mas então, dito tudo isso, vamos ao ponto.


Eu gosto dos filmes do Padilha. Gostei do ônibus 174, gostei dos dois Tropa de Elite, gostei do Narcos, gostei até do Robocop. E gostei também do Mecanismo. Terminei agora e fiquei com vontade de ver a próxima temporada.


Estou falando de técnica, de entretenimento, de produção de cinema. Depois falo de ideologia.


A série é bem feita. É uma série policial, com menos ação do que eu esperava, mas ainda assim interessante. Mostra o olhar do policial “herói”, incorruptível, marginalizado mas que triunfará pela força de vontade. Fórmula essa de grande apelo popular nos filmes americanos e que renderam muito sucesso à Padilha nos Tropa de Elite. Pra quem gosta desse tipo de filme, vale por entretenimento. Sobre estética de recorre a um narrador o tempo todo me cansa e não gosto muito, mas é uma marca dele, que ele gosta de usar. Nem todo mundo gosta do Tarantino meter cartelas e dividir o filme em capítulos, mas é marca dele, ele gosta de usar. Também não gostei da mixagem de áudio em geral. Tive muita dificuldade de entender os diálogos em alguns momentos, precisando deixar o volume bem acima do que costumo ouvir. De resto, tenho algumas críticas a cenas específicas, mas nada que me fizesse achar tão ruins que teriam estragado a série. De maneira geral, é uma série boa. Não é a melhor, mas também não é a pior.


Enfim, ideologia e posicionamento.

Apesar de gostar dos filmes do Padilha, não gosto nada do posicionamento político nem da ideologia que ele defende. Há tempos critico o posicionamento dele pelo viés direitista, especialmente de uns anos pra cá quando ele começou a adotar esse discurso “apolítico”, de que “nenhum presta” e que tenta deslegitimar a luta de quem busca melhorar o país através das vias democráticas, posição essa que a direita e a extrema direita em especial adoram.

Achei que no começo da série ele realmente se esforçou pra tentar ser neutro. Não podemos nos enganar achando que o único propósito dele é seguir a agenda. Ele obviamente também quer lucro, quer sucesso, quer continuar trabalhando como diretor internacional e pra isso é óbvio que ele iria tomar certos cuidados pra que a série não fosse puramente propaganda. Utilizar nomes fictícios e abrir a série com uma declaração de que se tratava de uma obra de ficção foi um bom começo, na minha opinião, apesar de logo percebermos que não foi honesto. Focar nos investigadores da polícia como personagens principais também foi muito inteligente, pois tira o protagonismo de certos “famosos” que apenas se beneficiariam da babação de ovo. Infelizmente, mais uma vez, com o passar dos episódios também fica perceptível que era algo só pra inglês ver.

Essas duas premissas adotadas por ele, apesar de serem utilizadas para defender ideais que eu não compartilho, certamente foram estratégias inteligentes pois abrem espaço para criar situações e diálogos que não temos como saber se ocorreram de verdade. Sendo uma obra de “ficção” ele pode tranquilamente utilizar esses espaços para disseminar sua ideologia. Mais uma vez, não concordo com a ideologia, mas ele é livre para acreditar e utilizar em sua obra.

Aí então, começam os problemas sérios, quando ele pega fatos reais, que temos conhecimento de como aconteceram, e distorce ou altera descaradamente para afirmar sua ideologia. O pior dos casos, que já está sendo falado por toda a internet, foi ele ter colocado a fala do Jucá (estancar a sangria em um grande acordo) na boca do personagem que simula o presidente Lula. Quando eu vi, me decepcionei imediatamente. Achei de um mal gosto, uma falta de caráter tão grande que quase parei de ver ali mesmo. Querer dizer que todos são iguais, já é ruim, mas menos pior seria se colocasse na boca de um outro personagem qualquer. Melhor seria se nem usasse a frase. Mas pegar a prova máxima da linha de pensamento do golpe e colocar na boca da pessoa que mais tem sido atingido pelo próprio golpe, foi baixo demais. Sem palavras.

Outro ponto que me incomodou demais foi ter colocado o advogado do personagem que representa Alberto Yusef como o responsável dos vazamentos da delação para a mídia, em especial a Veja, quando todos sabemos que desde o início o juiz Sérgio Moro acredita (inclusive por escrito) que deve se usar o poder da mídia e da opinião pública para fortalecer um caso e conseguir driblar certos impedimentos legais no trânsito do processo.

Em resumo, pegar a frase do Jucá e colocar na boca de Lula (que é apresentado como vilão) e pegar a estratégia do Moro e colocar nas mãos do advogado do Yusef (que é apresentado como vilão) não é ser imparcial, e muito menos coincide com a ideia de que nenhum presta. Ele, de maneira indecente e injusta, separou os bandidos dos mocinhos deixando de lado o discurso de que o mecanismo afeta a todos, que é justamente o que a série finge defender. É inocente achar que só o PT foi corrupto, da mesma maneira que é inocente achar que Sérgio Moro não tem partido, da mesma maneira que é inocente achar que existem soluções milagrosas, ou que existem pessoas exclusivamente boas ou más, ou ainda que seja possível prever como determinada pessoa vai reagir em determinada situação porque as pessoas “nunca mudam”. O ser humano é muito mais complexo do que isso.

Tendo pontuado essas questões (houveram mais algumas que não me recordo no momento, mas essas duas foram as mais fortes), gostaria agora de falar sobre a crítica que a série faz sobre o tal do “Mecanismo”, que nada mais é do que a regra máxima da corrupção no Brasil, que vai desde Brasília até as pequenas hipocrisias do dia a dia. Sabemos como funciona o jeitinho brasileiro. E sabemos que muitas vezes somos obrigados a compactuar com esse tipo de situação por nos faltar uma outra escolha. Na série o Padilha mostra isso de maneira bem direta, quando o personagem do Selton Melo tem um problema na rede de esgoto. Ele, como herói da série, é incorruptível e resolve o problema com as próprias mãos. Mas ele é um personagem de ficção e na vida real sabemos muito bem como na maioria das vezes, mesmo que a gente ache uma injustiça gigantesca, nem sempre temos a força necessária para lutar e acabamos pagando, aceitando ou simplesmente sendo oprimido e perdendo pro “Mecanismo”.

A crítica é interessante. Realmente essa cultura faz mal para o país e mesmo as pessoas que são vítimas e acabam cedendo, não aguentam mais compactuar com esse tipo de coisa. O problema é que se trata de uma questão cultural e não física, como a série tenta nos mostrar. Digo isso pois a meu ver, se interpretada de maneira literal, as pessoas podem passar a achar que o sistema democrático precisa acabar pois nele se encontra o mal do mundo. E já temos pessoas que pensam assim, e sabemos o quanto isso é perigoso. Se entendermos como uma questão cultural, a única saída, que tanto direita quanto esquerda concordam pelo menos de maneira mais abrangente, é melhorar a educação em todos os âmbitos e em todas as cidades do país. Só assim acabaríamos com esse mecanismo. Querer acabar com as eleições, querer colocar um interventor, querer a solução milagrosa, é a pior opção que temos no momento.

Por fim, gostaria de destacar que defendo que pessoas com posicionamentos contrários aos nossos tenham o direito de se expressar em meios artísticos e de entretenimento. Cabe a nós denunciar situações como essas que citei acima, mas ter um pensamento contrário e expressá-lo não é crime.

Infelizmente, não deixa de ser um grande ataque a ideologia de esquerda e aos ideais que acredito. Certamente essa estratégia de agir como “série de ficção baseada em fatos reais” vai manipular muita gente a acreditar no discurso que ele inventou ao mesmo tempo que o protege de estar caluniando ou mentindo. Ataque forte e duro que acho que deve ser revidado. Não tenho nada contra quem não quiser assistir, quem quiser protestar, quem achar que deve fazer boicote etc. Mas mais do que isso, acho que devemos sempre e sem medo, levantar nossas bandeiras com orgulho e defender nossos ideais da mesma forma, expressando nossa visão sobre tudo isso, especialmente nos meios de entretenimento.

Logo mais sai o filme do Marighella, que vai ter uma força imensa e servir de contraponto ao discurso da criminalização da esquerda. Curiosamente dirigido pelo Wagner Moura, que possui um posicionamento completamente oposto ao de Padilha, mas que souberam trabalhar juntos de maneira profissional.

Devemos encher as salas de cinema, canais de televisão e internet com obras que contem o nosso lado da história e defendam a nossa ideologia. A direita tem feito isso frequentemente, por exemplo com o filme “Polícia Federal: A Lei é para Todos” (que possui grande valor de produção com gordo orçamento, mas com um roteiro pífio e extremamente propagandista) e o filme “Real – O Plano por Trás da História” (que é bem ruinzinho em diversos sentidos). A esquerda tem história e sempre teve força na produção de conteúdo audiovisual. Precisamos resgatar esse sentimento e fazer mais e melhor do que eles. Sem precisar recorrer a mentiras e distorções como feito nessa série, mas com força, orgulho e defendendo a verdade!

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